O
objetivo dessas linhas é expor de maneira mais ou menos sistemática o que
considero serem os maiores erros no processo de formação política da militância
da esquerda revolucionária. Sabemos bem que sem boa formação política é
impossível uma prática política correta e eficiente – ao mesmo tempo, a boa
formação política por si só não garante isso. Mas o que é uma boa formação
política? Buscando ser o mais didático possível, vamos de maneira esquemática
dividir a questão em tópicos e ir abordando-os detidamente.
- A prática impõe a
necessidade.

Normalmente,
pessoas presas a esse tipo de debate, não mantém uma prática política efetiva.
São pessoas que apenas estudam o “marxismo” ou que estão começando a se inserir
numa cultura de esquerda; contudo, isso também acontece com militantes
organizados, ou formalmente organizados, e atuantes. O que fazer para superar
esse problema?
A primeira
coisa a ser dita, antes que surja algum entendimento errado, é que debates
sobre ontologia do ser social, estruturalismo marxista, pós-modernidade, história
do socialismo etc. são muito importantes. Mas esses debates não devem ser
apreendidos enquanto erudição acadêmica, mas como formas de compreender e atuar
na realidade mais imediata e ir expandindo o horizonte de compreensão. Ou seja,
o jovem ao começar a atuar na associação dos moradores, área de cultura ou
movimento estudantil, inicialmente se depara com os problemas concretos que a
classe trabalhadora e a juventude enfrentam (como a precariedade do transporte,
no caso da atuação em bairro, ou a falta de assistência estudantil, no M.E) e
atuando sobre esses problemas, se pergunta: como
eu posso entender melhor esse processo social e atuar no sentido de organizar a
ação política sobre essa demanda? A partir dessa questão, define suas
prioridades de estudo.
Por
exemplo, recentemente, estive na cidade de Petrolina, no sertão de Pernambuco.
Para quem não conhece, Petrolina é um grande polo agroexportador e uma cidade
com gigantesco avanço da especulação imobiliária. Dominada há várias décadas
pela Família Coelho, uma espécie de oligarquia aburguesada que funde seu poder
político com o poder econômico dos capitais atuando na cidade, e cria uma
situação onde a disputa programática é bastante difícil.
Conversando
com vários militantes de Petrolina, organizados e os “independentes”, era
perceptível como o problema da dominação oligárquica burguesa, sua realidade
imediata, chamava menos atenção do que os debates da moda na esquerda. Além
disso, por exemplo, caso se resolva ler com sistematicidade a obra de Lênin
(algo mais que recomendável), a pergunta de fundo deveria ser: como a obra de
Lênin me ajuda a pensar a minha realidade? Devo
deixar bem negritado que não estou defendendo uma espécie de “localismo” no
processo de formação política.
Todo
militante deve buscar através de sua organização e esforços próprios uma
formação que se possibilite compreender do particular até o universal, desde a
realidade de sua cidade, estado, país até o processo de acumulação mundial do
capital. Mas essa compreensão nasce de um longo percurso formativo com
sistematicidade e etapas; aí sim, afirmo sem medo de errar, que é necessário num
primeiro ciclo de formação política apreender os elementos básicos do
pensamento crítico – como entender numa abordagem introdutória o que é processo
histórico, materialismo, relações de produção, poder político etc. – aliado a
um estudo de sua realidade mais imediata de vivência e militância. Enfim,
as necessidades de atuação, e não a moda acadêmica ou o tema do momento nas
redes sociais, é que devem pautar as primeiras fases de um processo de formação
política.
- Cuidado com o colonialismo
cultural.
As modas
acadêmicas e os debates do momento nas redes sociais, grosso modo, são pautados
por problemas, intelectuais, conceitos e teorias oriundas dos centros do
capitalismo: Europa Ocidental e EUA. O Brasil viveu mais de 300 anos de
colonialismo e esse processo marca profundamente nossa constituição
sociocultural. Superado a sociedade colonial, fizemos uma transição burguesa
não clássica assumindo a posição de país capitalista dependente e
subdesenvolvido, reproduzindo sob novas formas e determinações o colonialismo
cultural intrínseco a dominação imperialista.
Na
música, cinema, teatro, literatura, artes plásticas, arquitetura e nas ciências
humanas, a predominância dos EUA, França ou Inglaterra como fonte inspiradora é
evidente. Mais que isso: chocante. Ao ponto de um aluno de ciências sociais da
universidade brasileira “conhecer” melhor a cultura francesa – ao menos em
termos de literatura sociológica – que a brasileira. Um militante comunista
deve se preocupar em não reproduzir o colonialismo cultural que sempre espera
as luzes da Europa ou dos EUA através de algum marxista ou pensador da moda –
como Zizek, David Harvey ou Boaventura de Souza Santos – e pautado pelas
novidades conceituais europeias. Note, de novo, fugindo dos falsos problemas:
não se trata de não ler os estudiosos europeus e estadunidenses marxistas e de
esquerda, a questão é no processo formativo eles não serem prioridade! Um
marxista brasileiro deve antes de tudo, além dos clássicos como Marx, Engels,
Lênin, Rosa Luxemburgo etc., conhecer e bem a produção teórica marxista e se
possível não marxista do seu país e continente.
Ler
Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra,
Caio Prado Jr., Heleieth Saffioti, Theotônio dos Santos, Guerreiro Ramos, Jacob
Gorender etc. é a nossa prioridade – ou deveria ser. Assim como deve haver uma
preocupação com os produtos culturais consumidos. O colonialismo cultural
promove fenômenos como um brasileiro conhecer mais da cultura e história dos
EUA e França do que da Bolívia ou Argentina. Estamos de costas viradas para
América Latina e fora da Pátria Grande, não há vitória definitiva do socialismo
no Brasil. Precisamos latino-americanizar nossa cultura e nossa teoria social.
Podemos
pegar um exemplo expressivo do colonialismo cultural. David Harvey, anos atrás,
lançou um livro sobre o “novo Imperialismo” em que usa o conceito de
“acumulação por espoliação” se referindo ao processo onde o capital se apropria
de terras, florestas, rios etc. de comunidades tradicionais (como povos
originários e remanescentes de quilombos) e camponeses. O conceito e o livro de
Harvey fizeram o maior sucesso no Brasil. Foi preciso um europeu teorizar uma
realidade que é uma das principais contradições sociais e motores da luta de
classe na Bolívia, Peru, Equador, Venezuela etc. para aí, e só aí, prestarmos
atenção a esse fenômeno secular da realidade latino-americana (e para não haver
erros: isso não é “culpa” do David Harvey, ele está apenas fazendo o seu
trabalho, o problema é o colonialismo cultural que nos domina).
A
importância do combate ao colonialismo cultural na formação revolucionária pode
ser mostrada através de um exemplo simples: todas as organizações e líderes de
processos revolucionários no século XX sem deixar de ser internacionalistas
estavam profundamente mergulhados, conectados, com a cultura nacional do seu
povo. Lênin era antes de tudo um profundo conhecedor da cultural russa; o mesmo
pode ser dito de Fidel Castro, Mao Tse Tung, Kim il Sung, Ho Chi Minh, Rosa
Luxemburgo, Che Guevara, Almicar Cabral, Agostinho Neto etc. Não se faz a
revolução sendo pautado pelo tema do momento nos cafés de Paris. Portanto,
priorizar a apreensão do marxismo brasileiro e latinoamericano no processo de
formação política é fundamental para um revolucionário nos seus estudos.
- A importância dos clássicos.
Na
cultura política da esquerda atual, existe uma compreensão média consolidada
com a derrubada da União Soviética e a crise do movimento comunista, que temos
que esquecer a nossa história no século XX e recomeçar tudo, criar o “novo”;
afinal, a história do movimento comunista é uma história totalitária de crimes,
autoritarismo e brutalidade. Essa ideologia se reflete no quase total
apagamento da importância dos clássicos na formação política. Primeiro,
entendemos por “clássicos” aqueles pensadores ou pensadoras que em sua produção
teórica mesmo estando localizada num determinado período histórico e realidade
sociopolítica conseguem fornecer ferramentas analíticas e conceituais para
apreender a nossa realidade. Ou seja, figuras como Lênin, Rosa Luxemburgo ou
Caio Prado Jr. não vivem nossa época histórica e conjuntura, mas, sem qualquer
transposição mecânica, o estudo de suas obras nos ajuda a compreender e atuar
na luta de classes atual.
Um
comunista hoje em formação terá bastante dificuldade de encontrar de forma
acessível os clássicos do pensamento comunista brasileiro e do movimento
comunista no mundo. Com exceção da nobre e honrosa Editora Expressão Popular
que publica com sistematicidade as obras dos clássicos universais do pensamento
comunista (e tem abrangência nacional), as editoras de esquerda (como a
Boitempo), as novas organizações (como as agrupadas em torno do PSOL), os
congressos acadêmicos e os debates da moda não se interessam por Astrojildo
Pereira, Otávio Brandão, Lênin, Mao, Agostinho Neto, Dimitrov, Clara Zetkin. Só as obras de Marx e Engels são louvadas
enquanto necessárias numa perspectiva muitas vezes academicista e envoltas na
ideia de “precisamos voltar à Marx” que foi “deturpado” pelo movimento
comunista.
Quais
as consequências principais dessa ausência dos clássicos na formação política?
Primeiro, os marxistas clássicos, em sua maioria, não eram professores
universitários, mas sim homens e mulheres de ação, organizados em partidos políticos
com militância em tempo integral e/ou dirigentes políticos nos processos
revolucionários. Nos textos clássicos há uma preocupação sistemática e
preponderante em como organizar a classe para tomar e conservar o poder num
processo de transição socialista; o marxismo na atualidade, em sua imensa
maioria, tem como referência professores universitários que nunca escreveram um
único livro sobre organização política e mantém ideias extremamente abstratas e
genéricas nos momentos de pensar a ação política. A ausência de uma sólida
formação dos clássicos cria, normalmente, o militante que até consegue fazer
boas análises de conjuntura, mas que é incapaz de pensar uma organização com as mediações táticas (palavras de
ordem, política de aliança, definição dos objetivos prioritários etc.)
adequadas vai influir realmente nessa conjuntura.
É
possível ver também nos clássicos – e aqui me refiro em especial aos
brasileiros e latinoamericanos – uma preocupação em formular uma teoria do
desenvolvimento capitalista no Brasil e na América Latina de modo geral.
Durante boa parte do século XX, diria que até o golpe empresarial-militar de
1964, todo grande intelectual, conservador ou de esquerda, procura apresentar
sua tese sobre o que é o Brasil. Caio Prado, Gilberto Freire, Oliveira Viana,
Celso Furtado, Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré e muitos outros tinham
a sua grande obra [magnum opus] sobre o desenvolvimento do capitalismo e suas
particularidades nacionais. A tendência das últimas décadas na teoria social
(como o predomínio da pós-modernidade) e a própria dinâmica institucional da
universidade dificulta de sobremaneira a realização dessas obras e o acadêmico
hoje é em grande medida um especialista em temas tópicos (ainda que muito
importantes) e sem condições de fornecer uma explicação global, sistemática e
de fôlego histórico sobre as tendências de acumulação capitalista no país.
As análises
tópicas e presas quase sempre a dimensão conjuntural estimulam uma prática
política taticista e reformista. Por exemplo, quem estudar sistematicamente a
obra de Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini e compreendem que a
superexploração da força de trabalho é um determinante do capitalismo
dependente brasileiro saberá que nunca teremos nada parecido com um Estado de
bem-estar social de tipo europeu e uma “era dos direitos”; evidentemente, para
as organizações reformistas ou socialistas com foco eleitoral, esse tipo de
conclusão teórica é demasiado incômoda.
A
ausência dos clássicos na formação política, além de tendencialmente afastar o
militante das reflexões sobre a questão organizativa, tomada do poder e
análises de maior fôlego sobre o desenvolvimento capitalista, também induz a um
tipo de formação que não reflete com sistematicidade sobre agitação e
propaganda, política de finanças, comunicação etc. Se o militante não vive e
reflete sobre a totalidade de sua organização – o que não significa, em
absoluto, ele “saber de tudo” e “atuar em tudo” – a tendência será a da
burocratização e a ausência de centralidade da independência de classe, fazendo
com que, por exemplo, seja considerado normal uma organização política ter no
fundo partidário controlado pelo Estado burguês sua principal fonte de
financiamento.
- Aprender com a nossa história.
Existe
na esquerda atual uma preocupação com o “novo”, a “novidade”, a “inovação”. Em
outras oportunidades, já escrevi amplamente sobre o tema. Não quero me estender
novamente sobre. De forma sintética, diria que a ideologia do novo prega que
todos os problemas organizativos e políticos da esquerda brasileira e mundial
se devem a manutenção de “velhas práticas” e a falta de renovação. Como algo
próprio da constituição cultural da modernidade burguesa, a ideia do novo é
algo em si positivado, na política, basta qualquer organização se apresentar
como “o novo” (normalmente esse novo é bem mais estético que programático e
político) para cair nas graças de deus e o mundo com olhares bem pouco críticos
– não custa lembrar o apaixonamento em prol do Syriza meses atrás.
Essa
ânsia pela pseudo novidade faz com que o conjunto dos militantes não conheçam
sua própria história, especialmente do ponto de vista organizativo. Como os
comunistas no século XX conseguiram organizar a classe trabalhadora e a
juventude mesmo enfrentando ditaduras militares, Estados coloniais e o
fascismo? Como é possível burlar a pressão das empresas e criar células
comunistas em monopólios transacionais como o Partido Comunista Italiano
conseguia com êxito? E a experiência de organizar pequenos comerciantes e
setores da economia informal pelos comunistas na Grécia e em Portugal? E a
expressiva força que o PCB teve no século XX entre engenheiros e clubes de
engenharia, como isso foi possível? E a capilaridade do Partidão nas
associações de moradores na cidade do Paulista (Pernambuco), como se deu? Os
exemplos são múltiplos.
O
desconhecimento sistemático de nossa própria história e sua análise predominantemente
através dos debates estratégicos via documentos congressuais dificulta que todo
o legado político e organizativo – um verdadeiro patrimônio – seja repassado as gerações mais jovens e que
a partir dessa experiência transmitida aja uma rica cultura política que ajude
a pensar criativamente a resolução dos problemas diários da luta política.
Vamos usar um exemplo.
Nos
anos 80 e 90 explodiu um gigantesco debate sobre o fim da classe trabalhadora,
fim do trabalho, sociedade informal, sociedade pós-industrial etc. Dos vários e
vários desdobramentos desse debate, um deles, foi a ideia de que embora a
classe operária continue tendo centralidade no processo de produção do valor,
na esfera da reprodução social é que as contradições sociais se expressam com
maior explosão e devem ser o foco da organização da esquerda. Essa “grande
novidade” teórica ganhou ainda mais visibilidade depois dos protestos de junho
de 2013 onde a qualidade dos serviços públicos urbanos foi a causa principal de
uma das maiores manifestações de massa na história do país.
Citando
de novo David Harvey (nosso exemplo preferido), o geógrafo vem teorizando sobre
isso. Bem, infelizmente, a maioria das pessoas não sabe que para a história dos
comunistas do PCB isso não é a menor novidade. A compreensão de que o trabalho
comunitário na luta por moradia, água, creche, educação, contra o aumento do
custo de vida é a primeira e mais eficiente via de estabelecer uma sólida base
popular e a partir daí potencializar o trabalho sindical é uma tradição na
história do Partidão. A atuação nas
“contradições da reprodução social” como estratégia de enraizamento social e
confrontação com o capital para além do ambiente da fábrica é uma novidade que
o PCB realizou com maestria nos anos 30, 40, 50... 60 etc.
Evidentemente,
a nossa história contém erros e mesmo os acertos, não são receitas mecânicas,
fórmulas de bolo, a serem aplicadas integralmente. A
reflexão sobre o papel do estudo da experiência política e organizativa dos
comunistas na formação política repete a “lógica” sobre a importância do estudo
dos clássicos: estudar de forma sistemática se perguntado como aquele
conhecimento pode ajudar a compreender e intervir politicamente a realidade
vivida.
Tendo
esses quatro princípios norteadores e baseado numa estratégia revolucionária,
acreditamos que o processo de formação política, isto é, o estudo acompanhado e
orientado pela prática e a prática refletida e orientada pelo estudo, será um
dos elementos indispensáveis para a formação de quadros revolucionários
fundamentais para a construção da imprescindível
e inadiável Revolução Socialista no Brasil.
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